Um estudo sueco recente, publicado em 2015, intitulado “Lactose intolerance and risk of lung, breast and ovarian cancers: a etiological clues from a population-based study in Sweden” [1] analisou a incidência de câncer de pulmão, mama e ovário entre indivíduos com intolerância à lactose.
A intolerância à lactose é uma condição patológica caracterizada por sintomas abdominais causados pela deficiência da enzima lactase. A menor prevalência já relatada é de 2% nos países escandinavos, enquanto que na América do sul, África e Ásia gira em torno de 60%, podendo chegar a 100% em alguns países asiáticos. Os indivíduos intolerantes podem consumir pequenas quantidades de laticínios, como iogurtes e queijos, mas geralmente são orientados a evitarem tais produtos, os quais podem afetar o desenvolvimento de câncer.
Os pesquisadores identificaram indivíduos com intolerância à lactose de vários Registros Suecos ligados ao Swedish Cancer Registry para calcular os índices de incidência padronizados (RRs) para cânceres de mama, pulmão e ovário. Em um total de 22.788 indivíduos identificados como intolerantes à lactose, os riscos de câncer foram menores e estatisticamente significantes: pulmão 45% menor risco, mama 21% menor risco e ovário 39% menor risco (tabela 1). Sendo que a incidência nos parentes de primeiro grau, pais e irmãos, dessas pessoas foram semelhantes à população normal, ou seja, não mostraram redução no risco, o que exclui os potenciais fatores confundidores genéticos.
Tabela 1
Risco de Câncer em pacientes com intolerância à lactose por sexo
Homens | Mulheres | Todos | ||||||||||
O | RR | 95% CI | O | RR | 95% CI | O | RR | 95% CI | ||||
Pulmão | 11 | 0.51 | 0.25 | 0.92 | 16 | 0.58 | 0.33 | 0.94 | 27 | 0.55 | 0.36 | 0.80 |
Mama | 118 | 0.79 | 0.65 | 0.94 | 118 | 0.79 | 0.65 | 0.94 | ||||
Ovário | 16 | 0.61 | 0.35 | 0.99 | 16 | 0.61 | 0.35 | 0.99 | ||||
Todos os canceres | 235 | 0.95 | 0.84 | 1.08 | 499 | 0.96 | 0.88 | 1.05 | 734 | 0.96 | 0.89 | 1.03 |
Abreviações: CI=intervalo de confiança; O=numero de casos observado; RR=risco relativo.
Bold type, 95% CI não inclui 1.00.
Leites e outros produtos lácteos podem conter altas quantidades de gorduras, particularmente gordura saturada, e alguns fatores de crescimento, como o Fator de Crescimento Semelhante à Insulina I (IGF-I), sendo que esses componentes da dieta têm sido associados com o desenvolvimento de vários tipos de canceres. IGF-I pode promover o crescimento tumoral por inibir a apoptose (morte da célula defeituosa), aumentar a proliferação celular, e promover a neoangiogênese (formação de novos vasos sangüíneos para nutrir o tumor) e já foi relatado que altas concentrações de IGF-I estão associadas com risco aumentado de câncer de mama [2].
Estudos anteriores descobriram que o alto consumo de leite está associado a concentrações plasmáticas de IGF-I, sugerindo que o baixo consumo de leite e outros produtos lácteos entre indivíduos com intolerância à lactose possa estar associado a um menor risco de câncer de mama. Além disso, evitar o leite pode alterar o microbioma do intestino humano, o que pode afetar o desenvolvimento de tumores.
No entanto, não podemos excluir os efeitos protetores sobre o desenvolvimento de cânceres de outros padrões dietéticos, como o consumo de leite vegetal, incluindo leite de soja, arroz, aveia, amêndoas, côco e etc., que são freqüentemente consumidos por indivíduos com intolerância à lactose.
Uma força importante deste estudo é que todos os dados foram recuperados de registros Suecos com alta qualidade e cobertura. Uma revisão recente sugeriu que a precisão diagnóstica em Registros Hospitalares Suecos é alta, com um valor preditivo positivo variando entre 85 e 95% (Ludvigsson et al, 2011). Além disso, o número de pacientes incluídos é grande o suficiente para garantir estimativas de risco confiáveis. O desenho do estudo prospectivo e a integridade do seguimento dos pacientes são outras vantagens importantes do presente estudo.
Uma das possíveis explicações para o efeito nocivo do leite se encontra na via da mTOR. Com base em pesquisas dos efeitos bioquímicos e hormonais do consumo de leite de vaca em seres humanos, uma revisão [3] publicada em 2015, apresenta o leite como um sistema de sinalização dos mamíferos que ativa uma quinase nutriente-sensível chamada de “complexo alvo mecânico da rapamicina 1” (mTORC1), o pivô regulador de tradução celular. O Leite, um produto de uma glândula mamária secretora, é necessário para interações gene-nutriente espécie-específicas que promovem o crescimento apropriado e desenvolvimento do mamífero recém-nascido. Esta via de sinalização é altamente conservada e finamente controlada pelo genoma da lactação. O leite é suficiente para ativar a mTORC1, a crucial reguladora de proteínas, lipídios, e síntese de nucleotídeos orquestrando o anabolismo, crescimento e proliferação celular.
Em todos os mamíferos, exceto os humanos, a ativação da via da mTORC1 pela ingestão de leite é restrita ao período pós-natal de lactação. É de suma importância o conceito de que a persistente hiperativação da via da mTORC1 está associada com o envelhecimento, a promoção e o desenvolvimento de desordens relacionadas à idade, tais como obesidade, diabetes tipo 2, câncer e doenças neurodegenerativas.
Outra possível explicação para o efeito protetor das dietas sem leite no câncer de ovário e mama está nos níveis aumentados de metabólitos de estrógeno presentes no leite. Níveis aumentados de metabólitos de estrógeno (EM) estão associados com cânceres do sistema reprodutor e uma fonte alimentar potencial de estrógeno é o leite. Em um estudo americano [4] as quantidades absolutas de EM não conjugado (livre) e não conjugado mais conjugado (total) foram medidas em uma variedade de leites comerciais (integral, semi-desnatado a 2%, desnatado e manteiga). Os resultados mostram que os produtos lácteos testados contêm níveis consideráveis de EM e esses dados suportam a hipótese de que o consumo de leite seja uma fonte de EM e a sua ingestão pode ter influência sobre o risco de câncer.
Resumindo, indivíduos com intolerância à lactose, caracterizados por baixo consumo de leite e outros produtos lácteos, tiveram risco menor de câncer de pulmão, mama e ovário, porém, o risco diminuído não foi encontrado em seus familiares de primeiro grau, o que sugere que o efeito protetor contra o câncer seja mesmo o seu padrão alimentar específico.
Assim sendo, muitos são os mecanismos que explicam que o leite seja prejudicial à saúde e promova o desenvolvimento de câncer. O abuso persistente de um nutriente de desenvolvimento e de um sistema de programação de outro mamífero, como o Bos taurus, uma espécie cuja taxa de crescimento inicial é quatro vezes maior que a dos seres humanos, é, portanto, um importante fator patogênico, promovendo as doenças epidêmicas da civilização ocidental [5].
Fontes:
[1] https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4453601/
[2] https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/19075184
[3] https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4581184/
[4] https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/19217359
[5] https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/19232475